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A ORAÇÃO E A TRANSFORMAÇÃO DA CONSCIÊNCIA

D. Basil Pennington

Jesus certamente foi um homem de oração. O Evangelho nos conta que ele ficou quarenta dias no deserto, rezando e se preparando para o seu ministério. Durante todo o período de seus ensinamentos, simplesmente passava noites inteiras rezando. Sabemos que os discípulos lhe pediram para ensiná-los a rezar. Contudo, encontramos na Bíblia muito poucas lições a esse respeito: o que lá vemos é a oração que todos conhecemos bem, O Pai Nosso, e algumas outras menores. No fim do seu Evangelho, João nos conta que, se escrevesse tudo o que Jesus ensinou, as palavras ocupariam todos os livros do mundo. Grande parte dos ensinamentos do Senhor chegou a nós pela tradição oral. Tenho ceteza de que Jesus ensinou aos seus discípulos bem mais a respeito da oração: como acabamos de ver, ele passava noites inteiras rezando e certamente não era só repetindo o Pai Nosso.

Um pouco de história - Os primeiros autores que escreveram sobre esse tema - os padres gregos - já ensinavam outro tipo de oração. Há quem diga que eles provavelmente retornaram aos ensinamentos de Jesus e aos da tradição judaica, de onde extraíram esse modo de rezar. os padres gregos chamavam esse tipo de prece de Monologian, que significa "a oração de uma palavra". No século IV, encontramos muitos homens e mulheres saindo em busca de mestres espirituais nos desertos, para aprender mais sobre a oração, sobre os caminhos de Deus. Entre esses buscadores havia um jovem que estudava em Roma, cujo nome era João Cassiano. Era realmente um buscador. Primeiro, ele foi para onde hoje estão a Síria e o Egito. Depois ficou algum tempo em um monastério em Belém. Passou sete anos procurando entre os padres e monges, na área onde hoje estão a Arábia e a Península do Sinai. Por fim, localizou-se no Egito, na região mais remota do deserto. Lá encontrou um homem cuja reputação era a de ser o mais puro, o mais velho e o mais sábio padre do deserto - o Abade Isaac. Quando fez essa jornada, João tinha um companheiro cujo nome era Pequeno Herman. Juntos, foram ao Abade e disseram: "Padre, dê-nos uma palavra de oração". Isaac fez uma linda e reconfortante prece naquela tarde, e os dois monges foram para suas celas sentindo-se mais completos. No dia seguinte, quando acordaram e se puseram novamente a caminho, o Pequeno Herman voltou-se para João e disse: "Foi lindo. Mas como poderemos nos sintonizar nesse tipo de oração?" Como em resposta, os dois monges pegaram suas coisas, voltaram ao Abade e disseram: "Padre, ensine-nos essa maneira de rezar". E Isaac lhes disse" "Ah! Vejo que vocês são verdadeiros buscadores. Vou ensinar-lhes o que aprendi, quando era jovem, com o mais puro, o mais velho e o mais sábio padre do deserto". Assim entramos nessa tradição oral e, como eu disse, voltamos ao primeiro século e ao Mestre. O Abade Isaac ensinou a João e a Herman esse modo de orar. Era o que João procurava. Feliz e satisfeito ele voltou para o oeste - para onde está hoje a França - e estabeleceu duas comunidades, uma para homens e outra para mulheres. Começou então a anotar tudo aquilo de que podia lembrar-se - tudo o que ele havia aprendido com os padres. Na segunda conferência do Abade Isaac, conforme o registro de João Cassiano, há referência a esse tipo de oração, transcrita pela primeira vez em latim. No ano de 525, São Bento escreveu regras para os monastérios. Era um homem humilde e, no último capítulo de suas prescrições, disse: "Minhas regras são para iniciantes. Se você quiser o verdadeiro ensinamento, procure João Cassiano". Por isso, os filhos e filhas de São Bento sempre foram à procura de Cassiano, para lá obter os ensinamentos da prece e da vida em oração. No ano 800, Carlos Magno foi nomeado imperador de Roma. Escreveu uma orientação para a Europa Ocidental, na qual ordenou a todos os monges e freiras que seguissem as normas de São Bento. Essa prática se difundiu por toda a Europa daquele tempo. Nos mosteiros da Idade Média, havia com frequência 60, 70, 80, 90 monges, e 200, 300 ou 400 noviços. Estes saíam para trabalhar com o povo. Durante a lida cotidiana, ensinavam esse tipo de prece. Esse jeito simples de rezar era muito comum entre os povos cristãos, até o tempo da Reforma protestante e da Revolução Francesa, quando muitos monastérios caíram e todos os ensinamentos se perderam.



Meditar e compartilhar - O papa Paulo VI foi o verdadeiro arquiteto da reforma da Igreja Católica. Em 1971, ele chamou alguns monges ao Vaticano e expressou sua profunda apreciação pela vida contemplativa. E recordou o que havia sido dito no Concílio Vaticano II: nenhuma diocese será completa sem uma comunidade de contemplação. Mas disse também que sabia que isso não aconteceria até que a Igreja reencontrasse essa dimensão contemplativa. Perguntou então a alguns de nós, monges, se seria possível sair e partilhar esse tipo de prece, essa parte de nossa tradição, com as pessoas. Foi um desafio para nós. Como poderíamos partilhar essa vivência tradicional de modo simples e prático, para que os cristãos pudessem incorporá-la facilmente às suas vidas? Entre os primeiros escritos em língua inglesa, há um tratado muito interessante e popular chamado A Nuvem do não-saber. Foi escrito por um mestre beneditino para um discípulo seu, um jovem de 24 anos. O monge ensinou ao jovem esse tipo de oração e, a pedido dele, escreveu esse tratado para ajudá-lo em sua prática. Hoje, usamos essa obra primitiva como base para transmitir a tradição. Tentarei formular a oração, o modo de rezar, em alguns pontos simples. Quero dividi-lo com vocês. Podemos rezar um pouco desse modo, depois teremos tempo para perguntas e discussão. Conversaremos então sobre outros frutos da oração, como a trasformação da consciência. Primeiro, deixem-me dizer algo sobre a postura a adotar na oração ou meditação. Tenho vivido na China nos últimos oito anos. Também fiquei algum tempo na Índia e na Tailândia, ensinando a prece e, é claro, descobri que existem irmãos orientais. Para eles, a postura tem uma relação muito importante com o processo meditativo. No Ocidente, entretanto, nunca lhe dedicamos muito tempo. O autor de A nuvem do não-saber diz ao jovem para simplesmente sentar, relaxado e quieto. O Senhor nos disse: "Venham a mim os aflitos e eu os aliviarei". Ele era um bom judeu e, quando se referiu a "você", quis dizer "você inteiro": corpo, mente e espírito. Para nós, a oração deveria ser um alívio não apenas para o espírito ou a mente, mas também para o corpo. E assim será, se conseguirmos uma maneira de deixar o corpo bem acomodado. Dessa forma, ele poderá relaxar mais profundamente e descansaremos no Senhor. Nossos irmãos orientais têm posturas maravilhosas: lótus, semilótus e outras. Para a maioria de nós, contudo, é tarde demais para adotá-las. Além de não termos começado mais cedo, nossos jeans irão apertar. Assim, para os ocidentais a melhor postura para rezar é sentar-se numa boa cadeira onde as costas fiquem bem apoiadas. Quando meditamos, as costas bem apoiadas permitem que a energia flua livremente, para que possamos nos revitalizar. Em outras posições, é possível que nos sentemos relaxados, com os músculos soltos. Entretanto, nesses casos poderíamos estar pondo muita pressão sobre a coluna, aumentando assim as tensões no resto do corpo. Por isso, é melhor que fiquemos sentados em uma boa cadeira, com as costas bem apoiadas e os pés no chão. Então fechemos os olhos suavemente. Isso é necessário, porque usamos mais de 25% de nossa energia psíquica para enxergar. Eis tudo o que eu tinha a dizer sobre postura.

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Há pontos importantes em relação a essa meditação ou método de oração. O primeiro é: permaneça com fé e amor em Deus, que habita o centro do seu ser. A palavra em inglês é "be" (seja/esteja). Portanto, apenas esteja com Deus. Não se trata de uma oração de pensamento, sentimento, visão, imaginação, audição: trata-se de uma prece de estar-com. Nela, não entregamos a Deus nossos bons pensamentos e nossas boas idéias: damos-Lhe o nosso ser completo. Estamos, com fé e amor. A fé é aquele presente maravilhoso de Deus, por meio do qual sabemos que Ele nos diz a Sua verdade. E Ele nos disse que virá e nos habitará. Sabemos que Deus habita em nós, no centro de nosso ser. Assim, em fé e amor voltamo-nos a Ele e nos entregamos por completo. Essa é realmente a pura essência da oração: simplesmente estar com Deus em amor. Para estar quietamente com o Senhor, para que Ele possa nos renovar, precisamos de alguma ajuda. Foi o que o Abade Isaac ensinou a João Cassiano. usamos, então, uma pequena palavra de amor para estar com o Senhor. Mas que palavra é essa? Entre os irmãos bizantinos, ela é o nome de Jesus. Por isso, eles a chamam de "a oração de Jesus". É a mais antiga e a mais pura forma de orar e corresponde exatamente à Oração Centrante. João Cassiano a trouxe do Abade Isaac direto para o Ocidente, mas deu-lhe alguma flexibilidade. Assim, cada um poderia escolher sua própria palavra de amor. Disse o mestre que escreveu A nuvem do não-saber: "Escolha uma palavra, uma palavra simples". Uma palavra como "Deus", ou "amor", é melhor. Mas escolha uma que signifique algo para você. E o significado, claro, é" "Eu apenas me entrego ao Senhor em amor". Dessa maneira nos pomos em oração, colocando o corpo confortavelmente e voltando-nos para Deus dentro de nós. Temos essa pequena palavra que, mansamente, nos permite ficar em paz com o Senhor. Mas acontece que de repente começamos a pensar em outras coisas: "Será que tranquei o carro?" Pensamos no que temos de fazer amanhã, ouvimos alguém falar lá fora - muitos outros pensamentos afloram. Assim, sempre que algo diferente nos vier à consciência, devemos retornar suavemente ao Senhor com o auxílio de nossa palavra de oração: suave e docilmente, apenas voltemos ao Senhor cada vez que nos percebermos dispersos. Deus é muito bom para nós . Ele nos deu um computador magnífico para ligar a outros computadores. Mas há um defeito nessa máquina: ela não tem o botão de desligar. Por isso é que chegam constantemente aos nossos pensamentos memórias idéias ou o que seja. Quando vamos meditar ou rezar, não podemos desligá-las. Precisamos simplesmente deixá-las de lado enquanto descansamos no centro de Deus. É mais ou menos isso: suponha que você está sentado na sala assistindo a seu programa de TV favorito e ouve uma batida na porta. Vai atender e lá está um amigo. Os dois conversam. Seus ouvidos continuam a ouvir a televisão e você também pode vê-la com o canto dos olhos. Mas está por inteiro com seu amigo, apenas deixa de prestar atenção à TV. Na oração ou meditação, orientamos nossa atenção para estar completamente com Deus. Se algo começar a produzir sons estranhos na TV, deixamos o nosso amigo e nos voltamos para ver o que está acontecendo. Na oração também: alguns pensamentos, idéias, memórias, chamam a nossa atenção e nos afastam desse estar com Deus. Assim que nos tornarmos conscientes disso, muito suavemente, muito amorosamente, com nossa pequena palavra, retornemos ao Senhor. Eis o modo de meditação e oração ensinado pelo Abade a João Cassiano.

Gostaria agora de sugerir que nos levantemos por um momento e nos movimentemos. Depois vamos nos sentar e meditar por alguns minutos. Quando oramos juntos, o líder geralmente começa com um pequeno ato de fé e amor. No fim da prece, ele reza o Pai Nosso. Mas qualquer um pode continuar em silêncio e em seu próprio tempo. Essa parte não vem do Abade Isaac, vem do Abade Basil. No fim da meditação sugiro que, em vez de terminar abruptamente, deixemos que nossa palavra de oração se vá - propondo que, muito suavemente, deixemos que o Pai Nosso brote dentro de nós. Deixemos, enfim, que a oração flua e que o Senhor nos ensine, por meio dela, o que quiser nos ensinar. Vamos nos acomodar o mais confortavelmente possível nas cadeiras que temos. Relaxemos o melhor que pudermos, com as costas bem apoiadas, os pés no chão, os olhos fechados. Voltemo-nos para o Senhor, que está verdadeiramente presente e, com nossa pequena palavra de amor, apenas descansemos n'Ele. Senhor, agradecemos pela sua maravilhosa presença conosco. Nesses minutos, apenas queremos estar Contigo em amor. Glória a Ti em Cristo. (segue-se um período de meditação). Agora quero convidá-los a usar três ou quatro minutos para compartilhar com as pessoas próximas de cada um, suas experiências na meditação. Para isso, formem pares. Quatro minutos. É espantoso o quanto as pessoas têm a dizer sobre uma oração silenciosa. (Passa-se o tempo proposto) Gostaria de chamar a atenção sobre esse ponto. Agora mesmo, enquanto você estava partilhando com seu parceiro, podia ouvir as pessoas à sua volta conversando. Também podia vê-las. Mas queria estar com seu parceiro. Então só ouvia a ele e, automaticamente, deixava todas essas outras coisas de lado. Não precisou dizer: "Não quero ouvir isso, não quero ver aquilo". O fato de querer estar com seu parceiro fez com que você, de modo automático, deixasse o resto de lado. Na meditação ocorre o mesmo. Você não tenta parar de ter pensamentos ou idéias ou não ouvir nada: simplesmente deseja estar com Deus. Estando com Ele, abandona os outros pensamentos. Contudo, enquanto está ouvindo o seu parceiro pode ouvir alguém mencionar o seu nome. Volta-se de imediato e se pergunta: "O que estarão falando de mim agora?" Dessa maneira, você tem que fazer um esforço para voltar a ouvir seu parceiro e deixar a outra conversa seguir. Também na meditação em oração, quando alguns pensamentos, memórias ou sentimentos o "pegarem", o distraírem, assim que se tornar consciente deles, use sua palavra de oração e, suavemente, retorne ao Senhor.

O significado da Lectio - Falemos um pouco de Maria. Eu poderia falar o dia todo sobre ela. A Oração Centrante, ou oração contemplativa, faz parte do conjunto da Lectio Divina, prática que começa com a leitura do texto sagrado. Na verdade, São Bento nunca fala da Oração Contemplativa, ou contemplação, quando se refere ao tempo necessário para a Lectio - e ele dedica muito tempo a isso. Quando o faz, usa tudo que poderíamos chamar de processo de Lectio: Meditatio (meditação), Oratio (oração), Contemplatio (contemplação). Lectio se traduz literalmente por "leitura". Mas não precisamos fazer isso, porque hoje nossa noção de leitura corresponde a algo que vemos numa página e que produz alguma idéia em nossa mente. Entretanto, não era esse o significado do termo "leitura" antes dos primeiros 1000 anos da era cristã. E assim aquele autor escreveu para o vislumbre dos outros, porque na época a maioria das pessoa não era capaz de ler livros. Ele recebeu a palavra e aprendeu com ela a formar nossa mente e nosso coração. E aqui Maria foi um bom exemplo para todos nós. São Lucas nos conta das muitas vezes que ela cuidou de todas essas coisas em seu coração. Em vez de tomar uma idéia e tentar amoldá-la ao nosso modo de pensar, trazê-la para o "nosso tamanho", a Lectio e o modo de Maria abrem-na: deixam vir a palavra de Deus, deixar-na expandir nossas mentes e formar nossos corações. Nossa Oração Centrante precisa estar no contexto dessa abertura para a atividade divina, receber a palavra num nível conceitual, abrir-nos para a fé e capacitar-nos a responder em contemplação. Gostaria muito de continuar falando de Maria, mas o tempo é curto. Apenas queria dizer, concluindo, que suas últimas palavras para nós, nas Escrituras, foram: "Faça tudo o que Jesus disser".

D.Basil Pennington


Viajando por outros domínios - No último ano, quase todas as semanas tenho recebido convites para conferências nacionais e internacionais, com o objetivo de discutir a meditação nas áreas da Medicina e da Psicologia. Como se sabe, somos atingidos pelas tensões o tempo inteiro. Se não as descarregarmos, se não as expirarmos, iremos construí-las dentro de nós. Isso nos causará problemas físicos e mentais. Aliviamos parte das tensões no sono. Podemos também atenuá-las com a prática de exercícios. No entanto, todos os que estudam o assunto concordam que o melhor meio de ficar livre delas é a meditação. Jesus disse: "Venha a mim e eu o reconfortarei". Gosto dessa palavra "reconfortar". É como um dia de primavera, cheio da energia da vida. Mas há outros temas a abordar em relação ao nosso assunto principal. O diálogo ecumênico, por exemplo. Por meio de minha experiência e da de muitos outros, concluí que o melhor meio de estar junto com outros cristãos e outras religiões do mundo é sentarmos reunidos em silêncio. É extraordinário perceber como um profundo entendimento acontece rapidamente entre pessoas de diferentes tradições. O Dalai Lama me disse que ninguém que ele conheceu, no Ocidente, o entendeu tão bem como Thomas Merton. E Merton não era academicamente profundo no budismo e em sua teoria. No entanto, encontrou-se com o Dalai Lama e, partindo do fundo de sua tradição, foi capaz de encontrar o budista na profundidade da tradição dele. Sinto que nós, da comunidade cristã, ainda não fizemos nossa parte no diálogo inter-religioso. Muitos cristãos têm procurado os indianos e budistas, mas trata-se de um caminho de mão única, não de um verdadeiro diálogo. A morte do grande patriarca do budismo na Tailândia foi um grande acontecimento, porque ele era o verdadeiro lider espiritual de todo o povo tailandês. Na época, o papa João Paulo II enviou um cardeal para expressar as condolências da Santa Sé e visitar os principais monastérios budistas da Tailândia. Fui chamado para acompanhar esse cardeal, que costumava dizer que os budistas tentavam ensinar-lhe seus modos e costumes, enquanto que ele nunca tivera nada para ensinar-lhes. Acabei partilhando a Oração Centrante com todos os principais monatérios budistas na Tailândia. Em todos eles, perguntaram-me se eu poderia permanecer lá por um ano, ou no mínimo por um mês. Naquela parte do Oriente, existe uma grande necessidade de contato com a riqueza espiritual que eles sabem que há no Ocidente, e que produziu santos como São Francisco de Assis, Madre Teresa de Calcutá e outros. No ano passado, em julho, tivemos um encontro de quatro dias em Getsêmani (abadia onde Thomas Merton viveu). Convidamos o Dalai Lama para vir e pedimos a ele para trazer 25 líderes e mestres espirituais budistas de todas as partes do mundo. Quanto a nós, levamos 25 mestres cristãos para dialogar. Foi um compartilhamento muito rico. Ao fim daquele período, uma das coisas que me surpreendeu foi o modo como os budistas relataram o encontro. Em suas narrativas, a coisa a que deram mais atenção foi a Lectio. Referiram-se a ela como algo que os havia aberto para toda uma nova maneira de chegar ao entendimento do Divino. Costumam perguntar-me sobre as semelhanças entre a meditação transcendental e a cristã. As pessoas querem saber se elas são idênticas, ou se devem mudar de abordagem, esquecer os mantras e passar a usar a palavra de amor. Tive oportunidade de conversar com Maharishi, professor de Meditação Transcendental, e membros de seu movimento. Maharishi tem uma universidade nacional. Em meu livro, Deus ao Alcance das Mãos, já publicado em português, (Paulinas, esgotado), há dois capítulos referentes à Meditação Transcendental. Em um deles, tento mostrar as diferenças entre ela e a Oração Centrante. Existem semelhanças, é claro. Em todas as tradições, há dois caminhos básicos de meditação: a de muito esforço e a de pouco esforço. Na primeira, trabalhamos para quebrar a linearidade da consciência. Vejamos um exemplo. Na escola Rinzai Zen, o indivíduo se senta durante horas em um pequeno banco e trabalha com seu mantra, com o seu koan, até atingir a experiência transcendental. Em muitos dos modernos métodos cristãos de meditação, tomamos uma palavra do Evangelho e trabalhamos com ela, pensamos a seu respeito e tudo o mais. Enfim, tentamos usá-la para quebrar barreiras e transcender. Por outro lado, há a Soto Zen, em que o indivíduo apenas se senta e simplesmente deixa as coisas acontecerem. A meditação transcendental é um método de menor esforço. Usa-se um simples mantra sonoro, relaxa-se e assim nasce um novo estado de consciência. A Oração Centrante é também um método sem esforço: apenas nos sentamos, ficamos em Deus e usamos uma pequena palavra de amor para descansar mansamente com Ele. Contudo, os dois métodos meditativos são na verdade diferentes. Na meditação transcendental, o mantra é um som sem significado: sua constante repetição leva a pessoa a um estado alterado de consciência. Na Oração Centrante escolhemos uma palavra significativa, e esta expressa a intenção de estar realmente em amor com Deus, de ser completamente "um" com Ele. Disse Santo Tomás de Aquino: "Quando a mente pára, o coração prossegue". Na meditação transcendental não há conceito ou idéia de relação interpessoal. Na Oração Centrante estamos respondendo, por isso a Lectio vem antes. Deus fala conosco primeiro. Trata-se de um ato de fé. Estamos respondendo a uma pessoa que sabemos que amamos ou que sabemos que nos ama, que se relaciona conosco. Existem outros pequenos detalhes que eu poderia citar, mas não creio serem úteis agora. O que costumo dizer é que as pessoas podem usar a meditação transcendental como um caminho cristão. É assim que fazem os indianos: quando eles se sentam para meditar, visam abrir-se para a atividade divina em suas vidas.

A consciência transformada - Falemos agora da transformação da consciência. A expressão "Oração Centrante" é inspirada em Thomas Merton. É um nome novo para um antiga e tradicional forma de oração que tem sido chamada de outras formas, em especial e mais comumente, Oração do Coração ou Oração no Coração. Nos EUA as pessoas são muito pragmáticas. Quando se fala em coração, elas logo pensam no órgão cardíaco, onde se gera a pressão sanguínea. Querem saber como as coisas funcionam e assim por diante. Entretanto, nas Escrituras, nos Salmos, quando se fala de coração, não se trata desse órgão. O sentido é o de lugar mais profundo, ao qual Deus nos conduz em seu imenso amor. Foi por isso que Merton começou a falar sobre centro ou raiz do Ser. A primeira vez em que compartilhei essa oração fora do monastério - e a seguir em inúmeras outras vezes -, usei citações de Merton, como esta: "A maneira mais fácil de dirigir-se a Deus é ir para o nosso próprio centro e passar, por meio dele, para o centro do divino". Por causa dessa citação, um dos participantes começou a chamar esse processo de Oração Centrante. O nome pegou e logo foi usado em todos os lugares. Esse era o modo como Thomas Merton sempre rezou. Ele nunca usou os métodos orientais. Essa era a sua maneira de rezar. Quando falava dos frutos da oração, uma das coisas de que ele mais gostava de mencionar era a transformção da consciência. Consciência é o modo como nos colocamos em relação às coisas, ou como permitimos que elas cheguem até nós. É uma maneira de "ouvir" o que somos. A formação da nossa consciência começa no útero materno. Em nossas primeiras experiências pessoais, é como se fôssemos um pequeno "pacote" de necessidades básicas. Precisamos de muitas coisas e gritamos e choramos para consegui-las. À medida que nossa consicência se expande, começamos a prestar muito mais atenção às pessoas que nos proporcionam as coisas, e assim nos relacionamos profundamente com elas, de quem dependemos. Por esse meio, tornamo-nos consciêntes do que fazemos - de nossas ações. Aqui há algo ao qual principalmente os jovens pais deveriam estar atentos: o amor dos pais é a coisa mais parecida com o amor de Deus que existe na Criação. Com Deus, os pais trazem as crianças ao mundo. Apenas derramam amor sobre elas, que não precisam fazer nada para ganhar ou merecer esse amor. Recentemente, um casal de sobrinhos teve o seu primeiro filho, uma garotinha. É maravilhoso ver um homem grande e maduro segurando o seu pequeno "pacote" e ver todo esse amor se derramando. Se os pais derramassem sempre esse amor, seriam, as pessoas mais lindas do mundo. Mas o que acontece, infelizmente, é que eles, conscientes de sua responsabilidade de educar e formar a criança, começam a enviar-lhe certas mensagens. Falam como se dissessem: "Assim, mamãe não vai mais amar você. Você deveria se comportar, guardar seus brinquedos, ir bem na escola e outras coisas. O papai não vai mais amá-lo, se você não for bem na escola, nos esportes, etc." Dessa maneira, a mensagem que a criança recebe informa-lhe que os pais não a amam por si mesma, mas porque ela age de determinados modos, faz certas coisas. Essa mensagem é reforçada pelas experiências que a criança tem com seus companheiros, colegas de brincadeiras, de escola. Os bons parceiros são aqueles que têm coisas, antes de tudo: piscina, jogos de TV, bola e assim por diate. Assim, o mais popular é aquele que faz mais coisas: o bom jogador de futebol, de tênis, o bom dançarino, etc. Desse modo, todos os retornos que obtemos nos levam a crer que nosso valor está no que fazemos, no que temos, no que os outros pensam de nós. Essa é a espécie de conceito que começamos a formar sobre nós mesmos. Não esqueçamos que Jesus disse que devemos deixar morrer esse falso eu para conhecer nosso eu verdadeiro. Os homens se apegam principalmente ao que fazem. Quando uma pessoa se apresenta, quase sempre informa o que faz: "Eu sou Joe Green, professor no Seminário". É por isso que muitas vezes a aposentadoria é difícil para os homens: durante 40 anos tenho sido Joe Green, professor do colégio, e agora subitamente eu sou só Joe Green. Quanto às mulheres, elas costumavam cuidar da casa, tinham filhos, e por isso não eram tão ligadas ao que eram, mas muito mais ao que tinham: roupas, jóias e até seus corpos. É claro que os tempos mudaram, e hoje Mary Green é presidente da Universidade enquanto Joe Green está usando brincos. Essa preoucupação também existe na religião. Para muitas pessoas, Deus é algum personagem que vive em algum lugar, e nós fazemos certas coisas para obter as bênçãos eternas: é tudo uma troca. Todos nós vivemos, em alguma medida, nesse domínio do falso eu. Todas as vezes em que se sentir triste, pergunte a si mesmo qual das três coisas está acontecendo: a) não posso fazer o que quero; b) não tenho o que quero; c) estou preocupado com o que pensam a meu respeito. Com que frequência deixamos de fazer o que realmente queremos por causa do que os outros irão pensar? Este não é um lugar muito feliz para se viver. Estamos cientes da possibilidade de perder o que temos ou o que fazemos. Estamos sempre em perigo ou sentimos sempre um certo medo. Lá no fundo, persiste o sentimento de que ainda somos aquele pequeno "pacote" de necessidades básicas. E então deixamos de lado essa grande fachada de fazer tudo, de possuir tudo, e mantemos todos afastados de nossa vida. Este é um lugar muito solitário para se viver. O Senhor nos disse que devemos morrer para esse falso eu. E é o que realmente fazemos, na Oração Centrante. O que fazemos? Nada: apenas sentamos com Deus. O que as pessoas pensam de nós? A maioria pensa que somos loucos. E o que temos? Não temos nada: abandonamos inclusive os nossos pensamentos. Na Europa ocidental, a filosofia mais influente nos tempos modernos tem sido a de Descartes. Sua proposição fundamental é: "Penso, logo existo". Eis o limite do falso eu. É claro que a relidade é outra: eu sou, logo penso - danço, canto, brinco, rezo. Na Oração Centrante abandonamos até o que pensamos. Abandonamos tudo. Morremos para esse falso eu. A experiência de nós mesmos como um "pacote" de necessidades básicas é o que tradicionalmente chamamos de pecado original. Mas na realidade Deus está no nosso coração, no centro do nosso ser e, em todos os momentos nos transfere o melhor de Seu amor. Lembremos uma passagem do Evangelho, em que um jovem rico corre para Nosso Senhor e diz: "Bom Mestre, o que eu devo fazer para ter a vida eterna?" E Jesus, como bom professor e bom rabino, não dá uma resposta. Retruca com outra pergunta: "Por que você me chama de bom? Bom é Deus". Ele pensou que o rapaz fosse dar mais um passo e dizer: "Você é Deus!" Mas o jovem rapaz não estava pronto para aquilo. Entretanto, Jesus fez uma afirmação fundamental e antológica: "Um é bom: Deus". Não sei se no Brasil vocês foram treinados com um pequeno catecismo, como nós nos EUA. Era uma coisa terrível. Uma das perguntas era: "Como Deus me fez?" Eis a resposta: "Deus me fez do nada". Não é uma coisa terrível para se dizer a uma criança? Se somos feitos de nada, o que valemos? Deus não nos fez do nada. Também não nos fez de alguma coisa. Mas Ele sempre nos põe diante de Seu puro amor, partilha conosco alguma coisa de Seu maravilhoso ser, Sua benevolência e beleza. Essa é a realidade: Deus está sempre em nosso centro, trazendo-nos para a maravilhosa realidade da Sua imagem. Quando nos ligamos a essa circunstância, certamente não nos preocupamos com o que os outros pensam: se vocês não gostam de mim estão "por fora", porque Deus gosta. É com isso que tomamos contato na Oração Centrante: não apenas morremos para essas coisas, mas abrimo-nos para tornar real a experiência de Deus em nós, e assim nos encontrarmos repletos da beleza divina. Na verdade, Deus não está lá para nos deixar ver a nós mesmos fora dele, porque somos a Sua imagem. E quando de fato nos encontramos em Deus, e descobrimos que Ele é esse caminho de amor em nós, então ficamos sabendo que podemos fazer tudo o que queremos e ter o que quisermos, porque Ele disse: "Peça e receberá". Essa é a transformação da consciência: começo a ver tudo de uma forma completamente diferente. Não mais tento me formar fazendo muitas coisas: trabalho, trabalho, trabalho. Não mais quero tornar-me indispensável. Não mais tento me aprimorar adquirindo coisas. Sei que sou esse lindo presente de Deus. É um sentimento de tremenda liberdade e alegria. Essa transformação, obviamente, não acontece na primeira vez que você se centra e talvez nem na quinquagésima. Contudo, pouco a pouco ela acontece. E então chega para você esta tremenda alegria: paz, liberdade e amor - todos os presentes ou frutos do espírito que são possíveis em sua vida. Tenho praticado a Oração Centrante por muitas décadas, e a tenho partilhado com centenas de milhares de pessoas por todo o mundo. Ainda assim, continua a me surpreender que esse simples ato de sentar por vinte minutos, duas vezes por dia, ficando apenas com Deus, pode nos transformar de uma forma tão completa. Quando eu era um jovem monge, comecei a ler um dos maravilhosos escritos espirituais de São Bernardo, que dizia: aqueles que experimentaram, sabiam do que ele estava falando. Os que não tiveram a experiência deveriam experimentar - e então ficariam sabendo. Há coisas que só podem ser conhecidas pela experiência. Eu costumava me irritar com São Bernardo, mas um dia o compreendi. Lembro-me de que quando estava na escola me apaixonei por uma garota. Fui para casa e falei para o meu irmão a respeito dela. Ele não conseguia ver o que eu via. Certas coisas você só consegue ver com a intuição do amor. E Deus é amor, e a única maneira de vê-Lo é amando. Esse é um dos frutos da Oração Centrante: essa transformação da consciência por meio da qual chegamos verdadeiramente a descobrir o quanto Deus nos ama, o quanto Ele está conosco, e saber como somos magníficos e o quanto somos amados, e que dádiva somos para todos os outros. A experiência inicial que temos é como se Deus estivesse ausente de nós. É uma coisa terrível, porque apenas Ele pode nos preencher. Mas é pelo fato de existir o pecado original que se dá a mudança. Essa é uma culpa feliz, porque nos trouxe a salvação."

Basil Pennington - D. Basil veio ao Basil em 1998, por iniciativa da Sociedade dos Amigos de Thomas Merton. Trabalhou com Merton em 1968. Seu mosteiro era até bem pouco o de S. José, no estado de Massachussetts. Foi sagrado Abade do Mosteiro de N. Sra. do Espírito Santo em 2000. O seu antigo mosteiro de S. José, trapista, cisterciense, foi encarregado, pelo episcopado americano, na década de 60, de começar o trabalho de diálogo interreligioso. A partir daí, o padre Basil começou suas viagens pelo mundo. Esteve na Índia, de onde trouxe para os EUA mestres de oração e ioga, para contatos e aprendizagem. Em 1971, o papa Paulo VI pediu-lhe que se dedicasse a ensinar a meditação. Desde então ele tem viajado, principalmente pelos países de língua inglesa. Com um grupo de outros monges, entre os quais Thomas Keating, chegou a uma síntese atual de toda a tradição orante da Igreja, que na tradição ortodoxa se conhece como a Hesychia, a Oração do Coração. Essa nova síntese - que foi o tema da palestra - recebeu o nome de Oração Centrante. O padre Basil residiu por oito anos em um mosteiro em Hong Kong até recentemente.



Pantocrator



(Essa matéria corresponde à edição de uma palestra dada por D. Basil, no auditório do Hospital Santa Catarina, em S. Paulo, a 22 de agosto de 1998, organizada pela Associação Palas Athena.)